A química desvendando o que os Faraós bebiam
|
Vaso com duas abas laterais,
localizado na tumba 217 do cemitério 4 em
Gedel Adda (Egito), datado entre o quarto e
sexto século d.C. Figura de RAE baseada no
artigo da PNAS.Foto
original: Copyright © 2009 National Academy
of Sciences.
|
Análises químicas de resíduos presentes em jarros ancestrais
egípcios trazem novas
Análises químicas de resíduos presentes em jarros ancestrais
egípcios trazem novas evidências sobre a adição de ervas e
resinas de plantas a vinhos produzidos na antiguidade.
Os
pesquisadores do
Museum Applied Science Center
for Archeology,
da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia, analisaram os
resíduos orgânicos depositados em dois jarros egípcios da
antiguidade. O primeiro deles, de cerca de 3.150 a.C., foi
localizado numa tumba na cidade de Abidos, no Egito,
pertencente ao faraó Scorpion I (Escorpião I). O segundo,
produzido entre o quarto e sexto séculos d.C., foi
encontrado no sítio arqueológico de Gedel Adda e
caracterizado como um recipiente para vinhos em função da
forma e das inscrições presentes em suas alças.
Com
base em estudos inovadores do grupo de arqueologia da
Universidade da Pensilvânia sobre vinhos da antiguidade,
McGovern e colaboradores investigaram a composição química
dos resíduos dos jarros egípcios através das técnicas de
infravermelho com transformada de Fourier (FTIR),
cromatografia líquida de alta eficiência (CLAE) e spot
tests de Feigl (Quadro 1). Foi sugerida a presença de
ácido tartárico (Figura 1), um marcador químico de uvas que
ocorre em quantidades apreciáveis em vinhos. O emprego de
técnicas espectroscópicas mais modernas como a CLAE acoplada
a espectrometria de massas levou a confirmação, através de
estudos de fragmentação dos íons característicos desta
substância, de que os frascos em questão continham ácido
tartárico e que serviram como recipientes armazenadores de
vinhos na antiguidade.
Ao lado do ácido tartárico, encontrado livre e na forma de
sais de cálcio, foram observados sinais de absorção na
região do infravermelho, relacionados à presença de
hidrocarbonetos, em torno da região de 2.900 cm-1,
bem como entre 1.550 e 800 cm-1 que sugeriram a
presença de outras substâncias. Associando as análises de
CLAE com detecção por ultravioleta, cromatografia em fase
gasosa acoplada a espectrometria de massas (CG-EM) e a
técnica de microextração em fase sólida (SPME, do inglês
solid phase microextraction, quadro 2) os pesquisadores
suspeitaram da presença de ervas e de resinas de plantas
nestes resíduos, como as de pinheiro ou terenbentina. A
resina de Pinus pode ser confirmada pela
identificação de derivados do diterpeno ácido abiético, um
biomarcador químico dessas resinas, como o ácido
desidroabiético, 7-oxo-desidroabiético e de reteno (1-metil-7-isopropilfenantreno).
Vinhos resinados eram produzidos desde a antiguidade até a
Idade Média e encontram-se descritos em tratados importantes
como a Geoponica,uma coleção de 20 livros compilada
em Constantinopla no século X. Estas preparações parecem ter
sido usadas por povos distintos desde o Mediterrâneo,
passando pelo continente europeu até o Oriente, e seriam
fabricados principalmente para proteger contra a doença do
vinho.
|
Figura 1.
Substâncias identificadas resíduos dos jarros
egípcios |
Estudos textuais de papiros médicos, como o papiro de Ebers
(1.550 a.C., quadro 3) e outros relativos a antigas
dinastias egípcias, descrevem o uso de preparados complexos
como remédios prescritos como laxante, emoliente,
expectorante, anti-helmíntico, analgésico, diurético ou
mesmo como afrodisíaco.
Para tal eram usados diversos vegetais, como alho, cebola e
melão, ao lado de ervas como o cuminho, endro e absinto,
resinas de árvores como terebentina, pinheiro e mirra, sendo
preparados como macerados, infusões ou decocções em mel,
leite, óleo, água e bebidas alcoólicas, sendo as mais comuns
o vinho e a cerveja.
Pela análise química do resíduo do jarro de vinho de Abidos,
foi sugerida a presença de ervas como o coentro, a menta, a
sálvia e resina do pinheiro, enquanto que no jarro
localizado em Gebel Adda, as substâncias observadas
sugeriram a presença de alecrim e de resina de pinheiro.
A confirmação da presença destas ervas nos vinhos resinados
não depende somente de dados químicos, já que há poucas
substâncias marcadoras nestas plantas que poderiam ser
utilizadas para este fim, dada a semelhança na composição
química destas espécies. Além disto, a transcrição dos
papiros e a identificação das espécies vegetais citadas
dependem da compreensão dos hieróglifos usados para
identificá-las, e vários ainda estão por ser traduzidos.
Entre as ervas supostamente presentes nestes vinhos, há
fortes evidências arqueoquímicas e arqueológicas quanto à
presença do coentro. O coentro é reconhecido pelo seu antigo
nome egípcio (š3w) nestas compilações e ocupava um
lugar de destaque em prescrições médicas à época, além de
ter sido encontrado em abundância na tumba do faraó
Tutancamon.
A análise química dos resíduos presentes em frascos antigos
abre as portas para o estudo da farmacologia ancestral. A
principal matéria prima empregada pelo homem na cura de suas
doenças sempre foi de origem vegetal, e muitas delas eram
usadas na forma de macerados alcoólicos obtidos da
fermentação de açúcares presentes em alimentos como arroz e
frutas. Com a associação de técnicas espectrocópicas mais
modernas e bastante sensíveis, como a ressonância
ciclotrônica de íons por transformada de Fourier, será
possível desvendar, em breve e com maior certeza, a presença
de constituintes minoritários que levarão a identificação
mais precisa da composição dos remédios usados na
antiguidade.
Quadro 1. Sobre Fritz Feigl
Feigl e seu filho Hans Ebert, ao tempo da chegada ao
Rio de Janeiro. Reprodução da figura com
autorização. Copyright© 2004 Química Nova.
Químico e professor austríaco, amplamente conhecido
na química como idealizador da análise de toque, uma
técnica simples onde reações com uma ou poucas gotas
revelam a presença de grupamentos funcionais. Chegou
ao Brasil em 1940, refugiado da perseguição nazista,
e deu grande contribuições para o desenvolvimento da
química brasileira. |
Quadro 2.
SPME, ou microextração em fase sólida: técnica de
microanálise, que não utiliza solvente e tem alta
capacidade de concentração de analitos. Tem diversas
aplicações na análise de substâncias voláteis, como
no estudo de aromas de alimentos, até a análise de
produtos farmacêuticas e na química forense.
|
Uso da seringa de SPME na amostragem de voláteis de
um fitocosmético. Tese de mestrado de Bárbara D.
Zellner, Instituto de Química da UFRJ, 2005
(Foto da autora) |
Foto de uma página do Papiro de Ebers. |
Quadro 3.
O papiro de Ebers é uma dos mais antigos tratados
médicos da humanidade, de origem egípcia e datado de
aproximadamente 1.550 a.C., possui mais de 700
fórmulas de remédios usados à época e tem mais de 20
metros de comprimento.
|
Referências Bibliográficas
McGovern, P. E.; Mirzolan, A.; Hall, G. R.
Ancient Egyptian herbal wines
Proc.
Natl.
Acad. Sci.
USA
2009, 106, 7361. [CrossRef]
McGovern, P. E.; Zhang, J.; Tang, J.; Zhang, Z.; Hall, G.
R.; Moreau, R. A.; Nuñez, A.; Butrym, E. D.; Richards, M.
P.; Wang, C., Cheng, G.; Zhao, Z.; Wang, C.
Fermented beverages of pre- and proto-historic China
Proc.
Natl.
Acad. Sci.
USA
2004,
101,
17595. [CrossRef]
Espínola, A. Fritz Feigl - sua obra e novos campos
tecno-científicos por ela originados
Quím. Nova
2004, 27, 169. [CrossRef]
Valente, A. L. P.; Augusto, F. Microextração por
fase sólida
Quím. Nova
. 2000,
23,
523. [CrossRef]
Zellner, B. D.; Caracterização Química, Olfativa e
Avaliação Antimicrobiana dos Óleos Essenciais de Hyptis
passerina Mart. e Lippia rotundifolia Cham. e
suas Aplicações na Fitocosmética, Dissertação de
Mestrado, Instituto de Química da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Brasil, 2005.
Para citar esta matéria:
Claudia M. Rezende, A química desvendando o que os
Faraós bebiam, Novidades na Ciência – SBQ Rio, 17
maio 2009. Disponível em: <http://www.uff.br/sbqrio>
Os textos das "Novidades na Ciência"
são de responsabilidade dos autores. No entanto, são
analisados pela "Editoria das Novidades", buscando uma maior
uniformidade dos artigos e citação correta das fontes de
texto e figuras. Para isso contamos com o auxílio de
"editores permanentes" e "editores eventuais". Todos os
"editores eventuais" são mencionados (em agradecimentos) ao
final das matérias publicadas
|