Introdução
Caros
leitores e leitoras. Convido-lhes para saborear
os produtos da reação de Maillard. “Como?” Dirão
alguns leitores, surpresos. Escrevendo assim até
parece estranho, uma espécie de pegadinha, mas
se eu estivesse convidando-lhes para degustar um
suculento churrasco em minha casa, rigorosamente
falando, estaria me referindo ao mesmo fenômeno
químico.
Sim, a
Química está em todo o lugar. Inclusive na sua
cozinha. A ação de cozinhar muito se assemelha
com a de um químico, que em seu laboratório
procura obter novos compostos. Vários fenômenos
físicos e químicos se dão neste cômodo da casa,
e a simples substituição de erlenmeyers e bicos
de Bunsen por panelas e fogões, respectivamente,
não ofuscam em nada a incrível semelhança entre
as duas práticas. Ao aquecer um alimento, você
está promovendo uma série de reações químicas.
Inclusive, há quem diga que está surgindo uma
nova profissão: “o químico/cozinheiro”.
O primeiro
artigo da série “Química na Cozinha” irá
descrever os motivos pelos quais nós, ao
cortarmos cebolas, não conseguimos conter as
lágrimas. Será tão ruim assim cortar cebolas que
não conseguimos nos conter ou há “alguma
química” por trás disso?
As cebolas e os
aspectos histórico e biológico
A cebola (Allium
cepa) é uma espécie que se cultiva desde épocas
remotas. Foi domesticada independentemente em vários
lugares do mundo. Todos os povos antigos (caldeus,
gregos e romanos) a consumiam em larga escala. No
Egito há documentos que descrevem a importância da
cebola como alimento e seu uso em arte, medicina e
na mumificação. Foi encontrada freqüentemente em
sarcófagos, sendo associada às superstições e
mitologias egípcias.
A classificação
taxonômica da cebola é:
Divisao:
Magnoliophyta
Classe: Liliopsida
Ordem: Liliales
Familia: Liliaceae
Gênero: Allium
Espécie: Allium cepa L.
Ela é uma planta
herbácea, com folhas cerosas e raízes fasciculadas
(em forma de cabeleira). Possui baixo teor protéico
e de aminoácidos essenciais, não podendo ser
considerada uma boa fonte nutritiva. O teor de água
varia de 86% a 92% conforme a espécie em análise.
Por que choramos
ao cortar cebolas?
A explicação
remete a uma análise da constituição da cebola. Os
que freqüentam a cozinha, não só para comer, mas
para preparar os alimentos sabem do que estou
falando. As cebolas nos fazem chorar. E quem já
prestou atenção neste fenômeno, percebeu que
choramos apenas quando estamos cortando-as. Uma
cebola colocada em uma estante do mercado é
inofensiva, isto é, não emite nenhum composto
irritante aos nossos olhos. Isso ocorre porque as
enzimas que ativam o sabor e biogênese do fator
lacrimejante são guardadas em vacúolos no
citoplasma. (veja um vídeo das
células de uma cebola no microscópio).
Quando cortamos a
cebola, rompem-se os vacúolos liberando as enzimas
que promovem a formação dos compostos sulfurados.
Também é
o corte, diga-se de passagem, que libera
substâncias que dão cheiro ao prato. Cortar,
amassar ou triturar alho e cebola resulta na
destruição de milhões de células que liberam
seu conteúdo (veja Figura 1). Nelas
estão, entre outras coisas, um sulfóxido do
aminoácido cisteína e enzimas chamadas
alinases, que provocam a transformação do
sulfóxido em ácido propenilsulfênico (veja
Figura 2). Aquele perfume maravilhoso
do refogado vem a seguir, com a
“transformação espontânea” do ácido
propenilsulfênico em tiossulfinato, este sim
o responsável pelo cheiro característico da
cebola. |
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Figura 1 - Posição
subcelular dos intermediários e
precursores das substâncias
responsáveis pelo cheiro
característico nos Alliums (alhos e
cebolas). Na cebola, a alinase está
no vacúolo de todas as células.
(Desenho fora de escala)
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Figura
2 - Transformação do PRENCSO em ácido 1-propenilsulfênico
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Mas quem faz a
gente chorar é outro composto. O ácido
propenilsulfênico, dizia-se, também se transforma
espontaneamente em propanotial-S-óxido – este sim o
fator lacrimogêneo volátil que irrita os olhos e
dispara o reflexo de produção de lágrimas em
abundância (veja Figura 3). São tantas que o
duto lacrimal, que despeja para dentro do nariz as
lágrimas constantes que limpam e lubrificam os
olhos, não dá mais conta. Todos dos dias, os olhos
produzem 30 miligramas (quase uma colher de sopa) de
lágrimas, um lubrificante natural.
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Figura
3 – Transformação do ácido 1-propenilsulfênico
em propanotial-S-óxido e tiossulfinato
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Mas todo esse
melodrama só acontece com a cebola. No alho, um
“primo-irmão” da cebola, mesmo amassando-o e
triturando-o não sentimos nenhuma irritação nos
olhos. Mas o alho também produz o tiossulfinato, não
o propanotial-S-óxido. A questão é: Por quê?
Um grupo de
japoneses publicou, na revista Nature, uma
explicação para essa incógnita. Segundo os
pesquisadores, o ácido propenilsulfênico não se
transforma espontaneamente no fator lacrimogêneo.
Quem faz isso é uma outra enzima, até então
desconhecida, que apenas as cebolas possuem e que os
pesquisadores tiveram a original e conveniente idéia
de nomear como “sintase do fator lacrimogêneo”.
O ácido
propenilsulfênico é formado quando se destroem as
células de alhos e cebolas e após se transforma
espontaneamente no tiossulfinato, este sim que dá o
perfume ao alimento. Mas os olhos só ardem com as
cebolas porque só elas possuem a tal da segunda
enzima que converte o mesmo ácido em fator
lacrimogêneo.
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Figura
4 – Produção de ácido sulfúrico e outros
produtos que irritam o globo ocular
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Após a síntese do
fator lacrimejante (propanotial-S-óxido) este,
altamente volátil, chega até o fluido que lubrifica
o nosso globo ocular formando substâncias que
desencadeiam a produção exagerada de lágrimas,
fazendo a gente chorar (veja Figura 4).
Para
acabar com a choradeira na cozinha, os
pesquisadores sugerem nada menos que a
produção de uma cebola transgênica, sem a
sintase do fator lacrimogêneo. Ela seria tão
perfumada quanto as outras porque a alinase
e a produção de tiossulfinato permaneceriam
intocadas. Os transgênicos, também
conhecidos como organismos geneticamente
modificados, são plantas ou animais que
tiveram a sua composição genética alterada
em laboratório por cientistas. Todos os
organismos vivos são constituídos por
conjuntos de genes e as diferentes
composições destes determinam as
características de cada organismo. Pela
alteração destas composições, os cientistas
podem mudar as características de uma planta
ou de um animal.
Enquanto
a engenharia genética não abraça essa causa,
pode-se utilizar alguns truques para cortar
cebola e não chorar. Um truque é colocar as
cebolas na geladeira antes de cortá-las, já
que o frio inibe a atividade da enzima LF
sintase. Pode-se também cortar cebolas
embaixo d'água (o que não é nada prático)
para evitar que os compostos voláteis
cheguem até o fluido ocular e promovam a
ionização do composto em ácido sulfúrico.
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Como o enxofre
pertence à mesma família do oxigênio na tabela
periódica, as propriedades desses elementos são
muito semelhantes. O enxofre forma compostos
orgânicos idênticos ao oxigênio. O prefixo “tio”
indica justamente a substituição de átomos de
oxigênio por átomos de enxofre em determinados
composto. Entre os tiocompostos, destacam-se os
tiálcoois (tióis), os tioésteres (sulfetos
orgânicos) e os sulfóxidos.
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Figura
5 – Pricipal composto responsável pelo
mau cheiro do gambá
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Alguns animais
utilizam como mecanismo de defesas compostos com
enxofre na sua constituição. (veja Figura 5).
A Química está em
todo lugar. E, apesar de algumas pessoas pensarem
que ela não serve para nada, vimos que, conhecendo
os processos naturais, podemos interferir para o
nosso bem-estar. Na próxima vez que deparar com uma
cebola, não tenha medo. Lembre-se das nossas dicas e
não chore nunca mais por causa dela.
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Tear-free
onion on sale
Few chefs will shed a
tear at the latest breed
of vegetable - an onion
which does not irritate
the eyes.
http://news.bbc.co.uk/1/hi/uk/3120047.stm
Cebola
promete acabar com
lágrimas e mau hálito
Embrapa desenvolve
variedade doce adequada
para o cultivo no
Nordeste
http://cienciahoje.uol.com.br/controlPanel/materia/view/1372
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