O tão utilizado desinfetante pode matar bactérias por
desenovelamento de suas proteínas.
Ela é a rainha da
limpeza, e uma simples gota é suficiente para tornar um
litro de água limpa e pronta para beber. A água sanitária é
utilizada há mais de 200 anos, mas o segredo por trás de seu
incrível poder para matar bactérias ainda não foi totalmente
revelado.
Figura 1: A água sanitária é
utilizada como desinfetante há mais de 200 anos
[fonte
da figura]
Pesquisadores descobriram, recentemente,
que a
água sanitária mata bactérias atacando proteínas,
destruindo rapidamente sua delicada forma. Uma exceção é a
bactéria
Escherichia coli, usada como modelo nos estudos.
Esta bactéria possui um mecanismo defesa recuperando as
proteínas antes que esses danos se tornem permanentes.
Curiosamente, este mecanismo é ativado pelo desinfetante.
A água sanitária é uma solução de
hipoclorito de sódio, cuja ação sanificante é controlada
pelo ácido hipocloroso, formado rapidamente na dissociação
do hipoclorito de sódio em água (Figura 2). Este ácido é
extremamente reativo e, por sua vez, ataca os aminoácidos
que constituem as proteínas alterando sua estrutura
tridimensional.
Figura 2: Reação de formação do
ácido hipocloroso em solução aquosa
A estrutura de uma proteína é crucial
para a sua função, e quando proteínas importantes perdem sua
forma as células das quais fazem parte podem não sobreviver
por muito tempo. Muitos estudos in vitro têm
revelado como a água sanitária reage com proteínas e
membranas de organismos vivos.
Como ocorre o desenovelamento
das proteínas?
A bioquímica Ursula Jakob da Universidade de Michigan e
seu grupo de pesquisas se interessaram pela ação da água
sanitária enquanto investigavam a proteína chamada
Hsp33, que atua como uma “chaperona
molecular”, ajudando outras proteínas a atingir e
manter sua forma própria.
Figura 3:
A professora Úrsula Jakob (esquerda) e
a estudante de doutorado Jeannete Winter
(direita) no Laboratório da Universidade de
Michigan
O grupo de pesquisadores de Michigan
descobriu que a E. coli, geneticamente manipulada
para não expressar a Hsp33, se tornou muito mais sensível ao
desinfetante. Quando os pesquisadores se aprofundaram nos
efeitos causados em células vivas, eles observaram que o
tratamento destas células com a água sanitária fez com que
muitas proteínas se agrupassem. Esses resultados foram
publicados na revista científica
Cell em 14 de novembro de 2008.
Uma possibilidade para explicar o fato é
a de que as proteínas danificadas começam a se desenovelar,
expondo “aminoácidos-cola” que antes se encontravam em seu
interior (aminoácidos que fazem interações
intra-moleculares, responsáveis pela forma tridimensional e
enovelada das proteínas). Quando estes aminoácidos são
expostos, interagem com aminoácidos similares de outras
proteínas danificadas, aglutinando-se de forma irreversível.
Jakob compara este processo de
algutinação ao do cozimento de um ovo: o aquecimento faz com
que as proteínas se desenovelem e se agreguem, e a clara do
ovo gradualmente se torna sólida e branca (Figura 4). Da
mesma forma que não se pode “descozinhar” um ovo, as células
não conseguem desfazer esses agregados. Para driblar esse
problema, as células usam a Hsp33 para prevenir a agregação
re-enovelando as proteínas antes de ocorrer o processo de
aglutinação.
Figura 4: Cozinhando um ovo No processo de cozinhar um ovo, o calor
faz com que as proteínas se desnaturem,
desenovelando-se e agregando-se; dessa forma o
ovo se torna sólido e a clara muda a sua
coloração para branco.
“Um botão de ligar”
De fato, a Hsp33 se torna mais ativa
quando as células são expostas ao ácido hipocloroso. Quando
a água sanitária reage com alguns aminoácidos de proteínas,
a Hsp33 se desenovela parcialmente e assume uma estrutura
ativa. Isto é atípico: o desenovelamento geralmente quebra a
funcionalidade das proteínas, mas para a Hsp33 o processo
atua como um “botão” para ativá-la. Outra chaperona chamada
HdeA também é ativada parcialmente sob condições muito
ácidas. Jakob espera que os pesquisadores encontrem mais
exemplos dessa resposta ao estresse celular no futuro.
Por que a E. coli desenvolveria um “sistema de
alarme” contra um desinfetante inventado por seres humanos?
A resposta a essa questão pode estar relacionada ao fato do
ácido hipocloroso ser encontrado na natureza. Os
neutrófilos, por exemplo, que são células do sistema
imunológico, produzem ácido hipocloroso para matar as
bactérias que foram
fagocitadas. Entretanto, isso não se aplica ao
comportamento da E. coli, segundo o microbiologista
James Imlay da Universidade de Illinois. “Esta bactéria não
vive em um meio onde haja neutrófilos”, ele diz. Jakob
relata um estudo que sugere que o ácido pode limitar o
crescimento bacteriano nas entranhas de insetos, e diz que
pode haver outras fontes de ácido hipocloroso que ainda não
foram identificadas.
Em outras palavras, o estudo não descarta a possibilidade de
a água sanitária possuir outros mecanismos de ação. É
sabido, por enquanto, que o desinfetante pode reagir com
moléculas que constituem as membranas, podendo fazer com que
estas se rompam, matando as células. O desenovelamento de
proteínas e sua agregação parecem ser a parte mais
importante desse mecanismo.
“Todos sabem que a água sanitária desinfeta, e é só”, diz
Jakob. “Poucos se preocuparam em saber sobre o mecanismo
pelo qual isto ocorre.”
Veja o vídeo do
youtube ilustrando como acontece o
enovelamento de proteínas: